segunda-feira, 31 de julho de 2023

Flor-de-Lis

 


Muito religiosa, podia ter nascido Maria de Lourdes (11/02), mas Vovó Rosa decidiu-se por Suzana, que significa “pura como um lírio” e o vovô polonês enrolou a língua e registrou Zuzana, com "z".

Ainda bem que o segundo nome não tinha como errar: G e n o v e v a.

Difícil mesmo era o sobrenome – Dzworniarkiewicz – 16 letrinhas bem trabalhadas que só ela sabia pronunciar.

Nasceu em meio a cinco irmãs e apenas um irmão, Isidoro, o bendito fruto.

Infância difícil, interior, chão batido e mais de 10 km a pés descalços para a aula de catequese.

Queria ser freira. Vovô deixou, mas vovó não aprovou.

Fugindo dessa criancice pesada, cresceu logo e deu um jeito de vir para a cidade.

Com 17 anos, conseguiu emprego em uma casa de família, na capital paranaense e lá ficou, por anos e anos.

Loira, tímidos olhos azuis, encantou-se por rapaz moreno, de olhos escuros e sorriso largo.

Acabaram noivos, mas a religiosidade nunca deixou de ser sua melhor companhia.

A casa que lhe acolhera ficava em frente às vermelhas paredes do quartel do Corpo de Bombeiros de onde começou a perceber olhares que se repetiam toda vez que ia varrer o quintal ou lavar as calçadas.

Noiva que era, não dava bola, mas o admirador secreto era insistente e ousado. Só esqueceu de dizer que também era comprometido.

Olhares aqui, sorrisos dali, desmancharam os compromissos anteriores e passaram a se conhecer mais de perto.

Acabou indo morar com a família dele – pais e uma irmã, Olívia, que hoje ainda vive o auge dos seus 96 anos, sem grandes recordações.

Novos, mas também difíceis tempos aqueles! Era tratada como empregada, só que agora sem remuneração e já passava dos 30.

O mês virou e a dita não desceu. Bingo!!!

E a correria para o casório começou.

Cartório, igreja, aluguel do vestido de noiva, e de presente, um lindo bolo de presente da Dona Angelca.

Ela mesma se arrumou e lá se foram os três para selar o matrimônio.

Em poucas fotos que resultaram do evento de 31 de maio, dava para perceber o olhar torto do noivo. Vinho Sulino em excesso foi a causa e passos trançados, a consequência.

O dinheiro que ganhavam era pra comida e a curiosidade era sobre a cor dos olhos da menina.

Novembro nasceu e a primogênita chegou!

Olhos cor de café sem leite...

Época de morangos e o bolo de um aninho foi em forma de coelho, coberto de coco e com um laço vermelho no pescoço.

E assim crescemos com essa mãe trabalhadora, generosa e atenciosa, apesar da dificuldade que tinha para abraçar.

Depois entendemos o motivo. Desconhecia! Carecia de afeto.

Tinha o sonho de saber costurar.

Mal sabia ela, que retalho a retalho, passou a vida remendando o sonho de muita gente.

Quando criança, andava descalça. Já adulta, calçou pés nus e vestiu corpos carentes de vida e amor.

Seu lema era a bondade, a caridade, a compaixão, a solidariedade e o colocar-se no lugar do outro, mesmo sem saber o que significava a palavra empatia.

Sofreu violência física, psíquica e  verbal, mas o seu espiritual resistiu bravamente às injúrias, às calúnias, aos socos e pontapés.

Um dia o olho direito arroxeou, criou coragem e denunciou. Mas aí veio o medo a lhe assombrar o ouvido e abafou sua voz.

Sempre fez da sua religiosidade o seu pilar. Ali se prostrou, ali chorou e ali se levantou e seguiu em frente, ainda mais forte!

Não bastasse as dificuldades da vida, seu filho mais novo seguiu os caminhos do pai,  e por vezes amorteceu sua dor como sequela da embriaguez alheia.

Resiliência era outra palavra que ela não conhecia, mas pode ser o maior exemplo a ser guardado na caixinha das superações.

Conversadeira, vivia sorrindo, contando causos e puxando conversa. Às vezes, até um pouco inconveniente, mas foi o caminho que encontrou para disfarçar a tristeza e a angústia que sufocavam seu coração. De tão grande não cabia no peito e precisava alcançar o outro, como num abraço apertado.

Amava ajudar as pessoas e fez disso o seu lema. Foi muitas vezes explorada, mas seu coração era MAIOR e seguia emprestando aqui, ajudando ali, construindo acolá.

Nossa! Como se orgulhava de ter estudado um pouco de francês, oportunidade que aproveitou na igreja que frequentava e que ficava perto da casa onde trabalhava.

Passou em concurso público. Trabalhava na copa de uma instituição de saúde, fazendo cafezinho e comprando lanches para os funcionários.

Certa vez, no caminho para a padaria, um cão a avançou. Um motivo para visitar a benzedeira Dona Angelina, que sabia fazer cachorro de cera aparecer na parafina aquecida.

Apreciar os mais variados tipos de balas que as Lojas Americanas ofereciam também era um sonho que se concretizava toda vez que fulana ou beltrano careciam de conforto num dia difícil.

E quando os filhos estavam com dor de cabeça, então? Era só ela passar a língua na testa deles e cuspir por três vezes que a dor ia embora...não precisava nem chamar a Neusa.

Porque MÃE é assim! Opera milagre e faz mágica o tempo todo!

Marca pra sempre!

Mulher, filha, irmã, tia, vizinha, esposa, funcionária pública – GRANDIOSA em todas as instâncias!

Nasci morena, olhos castanhos e cabelo escuro, mas tive a bênção de ter escolhido essa mulher especial como minha mãe. Vestida de um azul que espelhava ainda mais o céu, foi o lugar com o qual sempre se identificou e local para onde retornou em 06.12.2012.

Depois de tanto sofrimento e tanto amor ao próximo, seu frenético coração descansou.

Mas o lírio ainda vive e pulsa, puro de corpo e alma!

Perfuma, dorme e ainda me acolhe em seus braços.


(Flor-de-lis é a representação de um lírio utilizado antigamente nos brasões e escudos da realeza francesa, associada em especial ao rei Luis VIII, quem a utilizou primeiramente em um sinete. A flor-de-lis é símbolo de poder, soberania, honra e lealdade, assim como de pureza de corpo e alma).

Feito canção de ninar.

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