sábado, 8 de novembro de 2014

Cura




O dia nasce, 
mas não chora.

Brilha, 
iluminando o silêncio que impera, 
quebrado apenas pelo cantar de um pássaro matutino e feliz.

A paisagem paralisa!

O olhar vai longe até onde o coração alcança, e a gratidão
de um DEUS que realmente existe bate no peito.

A casa, perfumada pela granola que pula na frigideira,
acolhe, recolhe e chama para o café da manhã,
regado a histórias, trocas e compartilhar generoso.

O passeio pela horta encanta a menina da cidade, que em meio a cebolas, 
pimentões e tomates se acha em plena feira a céu aberto.

Um céu que se pinta de azul pra alegrar os olhos e o coração.

O limoeiro continua carregado, feito bolinhas de natal,
e as compotas se multiplicam.

As abóboras, aguardam a amiga cal pra se fazerem ainda mais apetitosas.

O pãozinho de cada dia, cresce à espera do forninho quente e acolhedor.

Lá fora, uma linda coral atleticana (ou flamenguista), passeia, elegante,
em seu banho de sol,
e o medo, que antes petrificava, busca a superação
de um entendimento maior.

A natureza se apresenta em forma de cura
e aos poucos, as feridas vão cicatrizando,
o coração serenando,
o sangue pulsando lentamente,
a pressão caindo,
os olhos fechando...

Continuo morrendo pra tudo que me faz mal,
renasço para a vida!

terça-feira, 28 de outubro de 2014

Um lugar ao sol



c  r e S C E R, em todos os sentidos, não é fácil!

Quando somos criança, sonhamos em ser gente grande, e quando o somos, queremos a pureza e a espontaneidade infantis.


Frequentamos escola e quando chega a complicada fase da aborrecência, ainda precisamos lidar com um bicho de oito cabeças chamado vestibular e aos 17 anos nos é cobrado uma profissão a seguir, simples assim!


Os mais sortudos tem a chance de frequentar um cursinho e ali encontrar as respostas para suas muitas perguntas, enquanto outros, seguem com suas dúvidas vida adentro.


Concluído o suado curso universitário, você precisa mais uma vez lutar por uma boa vaga, de preferência numa multinacional da moda.


Conseguindo entrar, tem que matar um leão por dia e ainda SORRIR!


Como se não bastante a função junior ou pleno, precisa alcançar a sênior, e então adoece!


Adoece pois a vida é muito mais que um salário alto, uma casa própria bacana, um carro zero ou uma viagem internacional por ano.


Adoece pois geralmente preferimos nos escravizar, esquecendo que a Lei Áurea foi assinada em 1888, por uma princesa chamada Isabel, e continuamos dando as costas ao tronco e às chibatadas.


Então você consegue aquela função tal almejada, e aí lhe cobram um casamento.


Depois de algumas baladas e barzinhos, você encontra a tampa de sua panela e organiza um casamento, que não pode ser apenas uma união abençoada por um padre ou diante de um juiz, precisa ser o evento do ano, e vai lá e gasta o que tem e o que não tem, pois precisa aparecer bem na foto e na fita.


Já casado, precisa ter na manga um estonteante  destino de lua de mel pra postar no facebook e fazer bonito e haja cartão de crédito!


Volta a ralar na empresa e nem percebe que mal tem tempo pra linda esposa e pra curtir a maravilhosa casa que comprou.


Dois ou três anos de casamento e a família começa a pedir filhos, não importando se você anda esgotado ou se sua mulher recém colocou  300 gramas de silicone nos seios.


Não satisfeitos com as tentativas naturais, ansiosos optam por tratamento de fertilização, e pra surpresa de todos e delírio familiar, chegam quádruplos. Clara, Matheus, Carolina e Frederico, e a vida que se achava monótona, vira um caos.


Mas tudo bem porque há as salvadoras babás e o problema está aparentemente solucionado. O papai continua trabalhando feito um louco e a mamãe consegue ir pra academia e manter a silhueta.


VENCER na vida virou IMPERATIVO! E quem não atende a esse crescimento está fadado ao fracasso de não pertencer à "tchurma".

Um  c r e s C I M E N T O totalmente ilusório e lamentável pois o homem continua criança, porém sem a espontaneidade,  imaturo e birrento, ainda brigando pelo brinquedo mais bonito da loja.


sexta-feira, 10 de outubro de 2014

Escuridão



Palavras presas, quando soltas, 
gritam sua liberdade de voar.

Olhos tristes, 
também não aprendeu a sorrir.

Preferiu se esconder atrás da saia 
e da sombra da mãe, que partiu.

Partiu pra fugir dos gritos, lamúrias, 
tudo imerso num passado sem fim.

O hoje é permeado por coisas guardadas, amareladas, 
que não permitem sonhar com um futuro mais claro, sem manchas.

Soluços são abafados, 
amores são reprimidos e 
a vida, esquecida,
não é vivida.

Os olhos se perdem em frenéticas e compulsivas leituras
que o levam pra longe, 
e não o trazem de volta.

Prefere ficar lá não-sei-onde, 
onde a fantasia faz as vezes da real-idade.

Faltam sonhos, 
faltam amigos, 
falta paz,
falta luz...

E há quem diga que é só acender a lâmpada...

quinta-feira, 9 de outubro de 2014

Dor de mãe




Nasceu no mês das crianças, e criança permaneceu.

Birrento, inseguro, teimoso... e com o passar dos anos,  prepotente, egocêntrico, orgulhoso.

A boca grita e o coração chora cada vez que vomita uma palavra negativa, um pensamento negro ou desfaz uma atitude boa, que logo voa...

Falta gratidão e sobra crítica e julgamento.

Apesar da força física, o fígado se desintegra diante de tanta raiva exposta pela vida. Dizem que ele, o fígado, se regenera, mas e o coração? Um coração que se faz rude, cruel e sangra, numa hemorragia que só faz aumentar.

Um olho busca o outro e não o encontra, braço aberto para o abraço não se faz e a afetividade se desfaz.

Se desfaz não, porque se existe, não encontra vida para se materializar.

Não se materializa pois ficou lá atrás, na infância desperdiçada com revoltas, mágoas, desentendimentos, incompreensões.

A noite adormece com cheiro etílico e amanhece com ressaca de passado.

Sombras que assombram e não somem.

Sombras que encobrem a cobrança.

Sombras que emudecem, cegam e velam uma surdez cada vez mais profunda.

Do outro lado, a mãe assiste a tudo com uma vela acesa.

A oração e a crença num Poder Superior é que a que acolhe no momento.

Acolhe, embala e tenta estancar um coração que ainda sangra e dói...

segunda-feira, 29 de setembro de 2014

Chove chuva




Desde pequena tenho uma forte ligação com a chuva.

Às vezes boa, outras nem tanto, mas profunda!

Quando criança, lembro que eu dava tudo por um dia sem ir à escola, num dia de chuva.

Já se passaram 4 décadas e ainda trago uma imagem como se fosse ontem... minha mãe saindo pro trabalho, trancando a porta e nos deixando seguros, em casa, num dia de chuva, na companhia de uma rechonchuda bacia de pipoca.

Chuva e pipoca, paixões antigas!

Chuva, água, aconchego e apesar de eu não fazer questão de entender, apenas SENTIR, talvez essa confortável sensação tenha a ver com minha morada de nove meses no útero de minha saudosa mãezinha.

Por outro lado, tenho medo de água. Tenho fobia de uma piscina onde a água chega na altura do meu pescoço, e no mar, me aventuro apenas a brincar no encontro das ondas já tocando a areia, mas ainda assim, me encanto com a água salgada que tempera a alma.

Outro dia comentei com os amigos que chuva tem gostinho de bolo e cheirinho de pipoca e aí entram aquelas gostosuras que hoje me aventuro a fazer, na certeza de que um bom chá da tarde precisa dessa saborosa companhia.

Uma chuvinha quieta nos convida ao recolhimento, ao aconchego, à introspecção, e na presença de uma boa música nos leva a viajar, sem sair do lugar.

Sei que muitas pessoas não entendem esse meu esdrúxulo amor, principalmente num país onde o sol se faz cada vez mais imperativo, e pra fortalecer ainda mais esse meu relacionamento com o "tempo", ainda tive a oportunidade de viver por quase 3 anos numa ilha que também amo, mas onde o sol se esconde e reina apenas por poucas semanas no ano. Foi lá, na terra da "Tia Beth" que definitivamente aprendi a gostar dos dias nublados e a não ficar deprê com os dias de garoa fina.




Outra doce lembrança!!!

Eu, que sou amante incondicional das CORES, mergulhei num curso intensivo pra compreender e aprender amar o cinza que toma conta de talvez 80% do ano daquele lugar onde fiz morada por muitas vidas...

Voltando ao país tropical onde vivo hoje, o sol é mais que bem-vindo  (e também ocupa um lugar especial no meu coração),  mas no ranking dos sites de previsão do tempo, dias chuvosos não emplacam muito no topo das listas como uma boa surpresa, mas continua no TOP 10 das minhas boas recordações.






terça-feira, 23 de setembro de 2014

CORação





A noite vai chegando de mansinho, 
e aquele coração que já se encontrava sem cor, 
se faz mais cinza ainda.

Sente falta da lua, que não veio,
e o brilho das estrelas também não está lá pra acolher sua tristeza.

Estranheza.

Um vazio bate à porta, 
entra, e ela espera que ele não se demore, 
tome seu chá e vá embora...
mas entre um silêncio e outro,
lágrimas não convidadas se fazem presentes
e o chá se vê levemente salgado.

Inundado.

Pensamentos confusos
se aproximam e se afastam
sem saber se vão ou se ficam.

Respira fundo, acende uma vela.

Serena seu coração. 

De repente, o vento afasta a cortina 
como que querendo revelar algo. 

Vai até a janela e se depara com a lua 
que resolveu aparecer pra desejar um lindo e cheio Boa Noite.

A tristeza vai minguando, 
dando lugar a um sentimento novo, 
crescente...

Fecha a janela. 
Despede-se do vento, da lua, das estrelas e 
dá adeus à tristeza.

Apaga a vela e dorme feito um anjo, 
esperando sonhar com a alegria de viver.

sábado, 13 de setembro de 2014

Café com poesia


Seja com café
que às vezes dá azia,
seja com amor e fé,
seja com poesia,
um  ingrediente que não pode faltar
no nosso dia a dia
é o bom humor
sempre com muita fantasia.


Unidade





Lua cheia
Janela entreaberta
Cortina alheia

Roupas pelo chão
Sedução
Dois corpos que se fundem
Atração

Prazer que
Contorce
Retorce e
Torce

Arrepio
Olho no olho
Desejo
Frio na barriga
Borboletas estomacais
Irracionais

Coração acelerado
Abraço desesperado
Beijo já esperado

Dois seres num só
Côncavo e convexo
Reflexo de um nó

Agudo ou circunflexo
Complexo
Desconexo
Com ou sem nexo
Perplexo

Vidros e corpos
Suados
Gritos e sussurros
Exalados
Atenuados



Na terra da Tia Beth







Não eram só os olhos verdes que me chamavam a atenção naquele rapaz exótico, de cabelos longos, geralmente presos num trivial rabo de cavalo e um brinquinho na orelha direita. Todo ano ele dava um pulinho, ora em Paris, ora em Nova Iorque , ora em Londres, simples assim, com uma freqüência possivelmente maior da que me fazia pegar o busão e seguir para o litoral paranaense.

Acho que foi aí que meu coração começou a pulsar mais forte pela capital britânica e toda vez que ele discretamente anunciava aos mais próximos o destino de suas férias, eu  queria ser um pé de meia furada pra seguir junto com ele no meio da bagagem.

Diante dessa impossibilidade, eu sofria, e como sofria!!!

Sofria, mas não desistia e o vôo para a realização desse sonho alto um dia chegou.

Comemoração digna de rainha, com direito a frio na barriga, suor frio, coração disparado, nó na garganta, orgulho de dever cumprido e prazer de sonho realizado.


Lá se foram 23 anos de nossas vidas e a paixão por essa ilha de céu nublado e gente fechada ainda tem lugarzinho reservado no meu coração, cercado de saudade por todos os lados...

Cheirinho de mãe





Sempre gostei de pão! Quentinho então, uma verdadeira tentação!

Cresci vendo minha mãe fazer pão em casa e o final de tarde de sábado era sempre agraciado com aquele cheirinho maravilhoso que se misturava ao cheiro de faxina feita e da cera Canário amarelo, em pasta, que se confundia com o por do sol que também era sempre convidado para o lanche.

Desafio mesmo era esperar o pão esfriar um pouco e tudo o que conseguíamos era deixar de lado nossas brincadeiras de criança e mal lavadas mãos, sentávamos à mesa extasiados diante daquela cena de manteiga derretida.

Chá Mate Leão foi sempre o meu preferido acompanhante e quente ou frio fazia as vezes do café com leite, nem sempre presente, mas a Doriana não podia faltar.

Cansada, sigo escrevendo, e de repente percebo que  meus olhos descansam em um porta retrato na estante, tendo como protagonistas eu e minha mãe.

Minha família sempre foi carente de lembranças e fotografias, mas como eu gosto de sair por aí tirando foto feito japonês em viagem de férias, sempre que a visitava, levava a câmera pra passear.

Geralmente ela era arredia a fotos, ora porque a roupa estava inadequada, ora porque o cabelo estava despenteado, ora porque não tinha passado perfume ou porque não tinha escovado os dentes. Mas naquele dia ela acabou cedendo.

Era o mês de outubro, aniversário do meu irmão, e meu pai também tinha sido convidado para o almoço, que tinha como principal coadjuvante, um delicioso empadão de frango que só ela sabia fazer.

Lembro que tivemos o almoço mais harmonioso que nossa pequena e fragmentada família já havia  vivenciado, faltando apenas a presença do meu querido irmão que mora do outro lado do oceano. De repente, como que num toque de varinha de condão, o telefone tocou e feito aquela pecinha do quebra-cabeça que faltava, ele também se fez presente e a saudade doeu no peito.

Depois de quase três décadas separados, minha mãe se deixou fotografar ao lado do meu pai e tiramos muitas fotos... mal sabíamos que seria seu último flash.

Exatos dois meses depois ela partiu pra junto das estrelas e cada vez que a noite se faz escura, ela brilha nos lembrando que nasceu e morreu pra brilhar.

Sua presença se faz ausente e seu lugar na mesa permanece vazio, mas minha alegria de criança ao ouvir aquele cheirinho de pão saindo do forno, ficará pra sempre no caderninho rosa de minhas boas lembranças, eterno como as fotos que pintam de infinito nossos melhores momentos.




Assovio



Feriado. 

Quatro e meia da manhã, e logo eu, que sempre gostei da chuva embalando meus sonhos e já declarei aqui o meu amor pelo vento, que eu costumava levar pra passear, acordei  assustada, com aquele assovio nervoso que estava me deixando apavorada.

Eu só conseguia pensar no telhado e nas frágeis telhas recém-trocadas, tão ingênuas e inexperientes.

Ainda ontem liguei a TV que mostrava a destruição de casas e vidas resultantes de mais um tornado nos Estados Unidos e hoje o vento incessante me despertou de um sono tranquilo que era pra estar de folga.

Medo! Talvez seja essa a palavra do momento... e eu que pensava que isso era coisa de criança no escuro.

Acendo uma vela. Faço uma prece.

E aos poucos ele vai de acalmando, e eu também.

sexta-feira, 12 de setembro de 2014

Um país sem voz, que grita



Quinta-feira à noite. Aniversário de uma amiga que completa 51 anos de boas ideias, e eis que tomo conhecimento de uma, das GRANDES!

Livraria lotada, poucas cadeiras, e à frente de um maravilhoso projeto, JP, fotógrafo, 32 anos, solteiro e pai. Alto, moreno, vestido como um afegão, tenta controlar o nervosismo em sua palestra de número 1!

Relata que sua carreira é recente e iniciou em 2010, fotografando aniversários de 15 anos, casamentos e bodas. De repente, decidiu que queria fazer foto documental. Encaminhou mais de 30 currículos e recebeu apenas uma resposta, destino Afeganistão, ao qual não pode dizer não.

Embarcou no final de março e passou 26 dias em Cabul.

Ao chegar no aeroporto, ficou sabendo que queriam explodir o avião em que estava, recheado de sul-coreanos. Ao pegar o que chamavam de “ônibus”,  para chegar ao saguão do aeroporto, percebeu que o veículo não tinha porta e estava completamente alvejado... foi aí que rezou para pelo menos chegar ao hotel.

Conseguiu pegar um táxi (todos são Corolas brancos, da Toyota) e ao chegar no hotel onde tinha reserva, simplesmente não pode se hospedar pois o local havia sido bombardeado.

Seguiu então para outro Hotel, onde pôde se sentir um pouco mais seguro, se é que isso seria possível.

Precisava sair às ruas para fotografar e logo nos primeiros dias já foi preso, numa detenção que durou 5 horas e 15 minutos.  Quinze minutos de reclusão e 5 horas de muito chá como os policiais. Dizendo que era do Brasil e tentando se comunicar com seu bad English, acabou por fazer amigos, ganhando, inclusive, uma roupa típica da região, vestimenta essa que o acompanhou pelos 22 dias restantes de sua aventura.

Fez muitas fotos e por trás de cada uma há uma história a contar.

A que muito me impressionou, foi a do senhorzinho que “batia o tapete” para que o visitante pudesse entrar. Em volta de um cercadinho de pedras, com os chinelos/sapatos na entrada, usou o restinho de água que possuía para lavar as mãos e poder cumprimentar aquele que só queria autorização para tirar uma foto. 

Detalhe, ali era sua casa e estava sendo hospitaleiro ao oferecer ao visitante sua última xícara de chá.  Uma generosidade que comove.

Crianças saindo da escola, felizes apesar de tudo, mulheres cobertas, mas sem esconder uma vaidade ainda oculta, homens procurando emprego, animais dividindo lixão com crianças famintas, ruínas, pobreza, lágrimas, indignação.

Tudo registrado de uma forma bastante peculiar, num olhar que vai além da câmera fotográfica,  chega no coração!


P.S. Dedico esse texto ao meu irmão, que não mora no Afeganistão, mas fez morada do outro lado do oceano e cuja semelhança física com o protagonista dessa história é gritante e fez meu coração doer de saudade...




Sonhos & Sonhos




Madrugada
Ouvidos cerrados

Lembrança alada
Sono tranquilo
Gritos negados
Sonhos por quilo




Tato aguçado
Olfato confuso
Paladar açucarado
Goiabada, doce de leite, creme, chocolate
Doce sonho doce

quinta-feira, 17 de abril de 2014

Olhar




Diego não conhecia o mar. O pai, Santiago Kovadloff, levou-o para que descobrisse o mar.
Viajaram para o Sul.
Ele, o mar, estava do outro lado das dunas altas, esperando.
Quando o menino e o pai enfim alcançaram aquelas alturas de areia, depois de muito caminhar, o mar estava na frente de seus olhos. E foi tanta a imensidão do mar, e tanto fulgor, que o menino ficou mudo de beleza.
E quando finalmente conseguiu falar, tremendo, gaguejando, pediu ao pai:


Me ajuda a olhar!     (A função da Arte - O Livro dos Abraços, Eduardo Galeano)



Querido Diego,

Tão jovem e já tão sábio! Deve ser o orgulho de seu pai Santiago, lindo nome, aliás, e uma opção minha se eu tivesse tido um filho homem; nome que resulta da contração do título "santo" com o nome Iago, que significa "aquele que vence" e me lembra o famoso Caminho de Santiago de Compostela, que um dia também gostaria de vivenciar.

Então o mar lhe foi apresentado... que belo e grandioso presente o convite para enxergá-lo também como os olhos do seu coração.

Eu experimentei o seu beijo salgado pela primeira vez aos 13 anos, e justamente por desconhecê-lo, fui abraçada por uma onda, que também desconhecendo a sua força, me puxou tão forte que me assustou bastante, e hoje em dia, tomo precauções e me faço  criança na beira da praia.

Mas você não precisa compartilhar desse meu trauma, mesmo porque, contemplar o mar é maravilhoso e eu diria mais, pra mim chega a ser reflexivo.

Parece que quando estamos lá, diante, dele, na moldura de tamanha imensidão nos tornamos tão pequenos quanto um grão de areia... Perceba, ainda, como o barulho das ondas, naquele vai e vem incansável, acalma e quase nos põe a sonhar acordados... não há terapia melhor e concordo com você, pois também fico muda de beleza e penso o quanto a natureza é generosa.

Generosa, pois a praia em geral não é de ninguém e podemos desfrutá-la de maneira gratuita, sem precisar pagar por cada foto sacada pelo coração... revelação pra lá de instantânea!E o melhor de tudo, é que ele, o mar, estará sempre lá a sua espera, seja para estar com ele apenas nas férias, seja para passar lá para apenas um aceno, um olá ou um simples  e novo olhar...

Um beijinho doce,

Hannah

Ano Novo

Para você ganhar belíssimo Ano Novo
cor do arco-íris, ou da cor da sua paz,
Ano Novo sem comparação com todo o tempo já vivido
(mal vivido talvez ou sem sentido)
para você ganhar um ano
não apenas pintado de novo, remendado às carreiras,
mas novo nas sementinhas do vir-a-ser;
novo
até no coração das coisas menos percebidas
(a começar pelo seu interior)
novo, espontâneo, que de tão perfeito nem se nota,
mas com ele se come, se passeia,
se ama, se compreende, se trabalha,
você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita,
não precisa expedir nem receber mensagens
(planta recebe mensagens?
passa telegramas?)

Não precisa
fazer lista de boas intenções
para arquivá-las na gaveta.
Não precisa chorar arrependido
pelas besteiras consumadas
nem parvamente acreditar
que por decreto de esperança
a partir de janeiro as coisas mudem
e seja tudo claridade, recompensa,
justiça entre os homens e as nações,
liberdade com cheiro e gosto de pão matinal,
direitos respeitados, começando
pelo direito augusto de viver.

Para ganhar um Ano Novo
que mereça este nome,
você, meu caro, tem de merecê-lo,
tem de fazê-lo novo, eu sei que não é fácil,
mas tente, experimente, consciente.
É dentro de você que o Ano Novo
cochila e espera desde sempre. "
Carlos Drummond de Andrade ANDRADE, C. D. Receita de Ano Novo.  Editora Record. 2008.






Querido Carlito,                                                         

O tempo segue no seu voo acelerado e uma vez mais chegamos ao final de um ano que está prestes a se tornar velho muito em breve.
Os ânimos já estão cansados e parece que até uma pena, pesa... Psicológico? Talvez.
É como se a palavra NATAL fosse sinônimo de comércio, presente, roupa nova, sapato novo, carnê novo, dívida nova...
E as crianças, coitadas, sempre na ansiedade de sentar no colo do Papai Noel, e num sorriso (ou choro) balbuciar xissssssssssss.
As pessoas ficam enlouquecidas e as lojas infelizmente agradecem, cultuam e aplaudem tamanha falta de bom senso, contanto que o lucro seja bom na mais lucrativa festa do ano, o famoso e gritante capitalismo selvagem.
Que pena!
Me desculpem os não religiosos, mas cresci ouvindo minha falecida mãe nos lembrando que o aniversariante do dia 25 de dezembro era bem outro e que a festa deveria ter uma outra conotação.
Me desculpe, também, tamanho desabafo, mas precisei exorcizar tudo isso no sentido de respirar fundo e  agradecer .
Enquanto todos fogem da originalidade encaminhando os costumeiros cartões de Natal, e alguns aderem ao digital e coisa e tal, você não!
Gentil, suave e sensivelmente me encaminhou algo lindo através do quase “démodé” carteiro, que enfrentando a bravura do meu pequeno Nicolau, deitou um belo envelope em minha caixa de correspondência.
Uma receita!!!
Adoro receitas, amo cozinhar e aproveitando que essa época é bem propícia para deletarmos as dietas e regimes, salivo, saboreio e já me delicio com tamanhas guloseimas e as poéticas são as melhores pois engordam apenas a alma...
Que lindo! Um ano colorido com sementinhas do vir-a-ser... vou plantar algumas no jardim lá de casa.
Que bom que você está me isentando das famosas listas, apesar de que ainda acho bom colocar no papel nossas prioridades, nossos planos, nossos desejos, nossos sonhos, apesar de que chega dezembro e são poucos os itens riscados, o que deixa um gosto amargo de dever não cumprido.
Obrigada por me lembrar que um novo ano cochila e adormece dentro de mim... Com certeza ele despertará com os fogos de artifício que gritarão na madrugada do dia 1º e isso me fará lembrar de você e de que somos ambos merecedores de um bom e renovado ano novo!

Abraço sempre apertado,
Beatriz

Sonhos esquecidos




Helena sonhou que deixava os sonhos esquecidos numa ilha.

Claribel Alegria recolhia os sonhos, os amarrava com uma fita e os guardava bem guardados. 

Mas as crianças da casa descobriam o esconderijo e queriam vestir os sonhos de Helena, e Claribel, zangada, dizia a eles:
- Nisso ninguém mexe.
Então Claribel telefonava para Helena e perguntava:
- O que eu faço com os meus sonhos?

(O Livro dos Abraços, Eduardo Galeano)



Querida Helena,

O que  fazer com os seus sonhos? Boa pergunta, uma vez que não sei nem o que fazer com os meus... afinal de contas são tantos e infelizmente bem poucos concretizáveis.
O que não significa que não devemos continuar sonhando, pois entendo isso como um verdadeiro agente motivador para que continuemos vivendo.
Mas então quer dizer que você esqueceu seus sonhos numa ilha? Onde anda com a cabeça menina?!..
E Claribel Alegria, que malvada ela por amarrar os sonhos e os manter escondidos, quase mortos, sem uma fresta de luz ou uma gota d´água...
Fiquei feliz ao saber que as crianças descobriram o esconderijo , mas ao mesmo tempo triste, por ela não deixar que elas os vestissem os seus sonhos e saíssem por aí experimentando coisas novas e saboreando belas paisagens.
Ela lhe telefonou perguntando o que fazer com os sonhos dela? Alguma sugestão? No meu entendimento ela vive num eterno pesadelo e é isso que ela consegue ao aprisionar os pobrezinhos, que vivem amarrados, inertes e secos...
Aliás, o nome dela deveria ser Claribel Tristeza, quem sabe assim, chorando, ela pudesse regar algum sonho  adormecido, acordando-o para a vida.
Um abraço apertado,
Anna

RETALHOS






Cheguei
de repente
de mansinho
não avisei

Inconveniente, talvez
Costumo incomodar

Contente
Falo a verdade
Cutuco a autenticidade
Luto com espontaneidade

Cheguei já partindo
Dificilmente fico
Raízes crio, rio
Semeio, colho
Sacio e sigo


O mundo me fascina
todo momento
qualquer esquina
reserva um sentimento

Um retalho aqui
Um retrato acolá
uma saudade
Em todo lugar

Assim vou
Parto
Reparto

Rasgando
Caseando
Costurando
Remendando
Colorindo
Sorrindo

Tecendo
lembranças
Trapos e tecidos
Resgatando semelhanças
Sonhos  umedecidos

Alhos e bugalhos
Coloridos frangalhos
Numa linda colcha
De pequenos retalhos

Pedaços daqui
Fragmentos dali
Unidos
Pela linha que dói

Mas que alinha 
e reconstrói