quinta-feira, 21 de novembro de 2019

Bandeira branca





quase um ano e nunca faltei a uma consulta. nunca deixei de fazer um exame. mesmo tendo que acordar cedo em jejum, ou esperar 6 horas e meia para uma ressonância. mesmo cansada dessa dinâmica de corredores repletos de maca e de marcas, de ferimentos e cicatrizes, venho cumprindo meus compromissos hospitalares com certo louvou. apesar do cansaço, apesar dos questionamentos, apesar das perguntas sem respostas, apesar da dor, que não me larga. acho que se apaixonou. que ficou dependente de mim, sei lá. mas tudo bem! resolvi dar uma trégua e hoje estendo um tapete vermelho de boas-vindas. reflito. aceito. aceito. reflito. mas estou tentando. hoje resolvi que vou sair. mesmo que chova. estou cansada de estar sempre presente na agenda do hospital e ausente dos alimentos que minha alma precisa. manifesto interesse. confirmo. e na hora "h" deixo de ir. adivinhe por que? porque a dor e a indisposição mais uma vez me fazem tirar um cochilo no meio da tarde ao invés de me incentivarem a colocar um vestido florido, um batom nos lábios e a sorrir com o sol que brilha lá fora, ou não. mas hoje EU VOU. mesmo que chova, mesmo com dor, mesmo com indisposição. na verdade, gostaria de deixar essas duas em casa, mas se elas quiserem me acompanhar, tudo bem! cansei de lutar. bandeira branca. seguimos juntas, aprendendo a conviver uma com a outra. aceitando e procurando entender tudo de maneira diferente. que tudo seja para nosso crescimento e evolução. por mais que o gosto seja amargo, que a cabeça fique pesada e o próximo passo literalmente demore a vir. o importante é o coração estar lá. onde gostaria de estar.





Somos de vidro, também de pedra, água e areia.


Viajantes do tempo. O remetente e o destinatário.


Tudo que jogamos contra o vento vem ao nosso encontro. Somos o próprio reflexo que vemos no espelho e além dele. Somos a vida e a morte. O tudo e também o nada. Somos idealizadores. Sonhadores. Propagadores. Feitos de inocência num mundo de regras. 
Maldosos ou bondosos - no tempo exato.

Ora oferecemos riscos, ora somos a mais perfeita das ternuras. O ponto de encontro está em cada um de nós. Encontrar-se é o desafio. Entender-se sagrado é o caminho. Enxergar além de, é o que falta. Permitir-se acolher o irmão e entender que ele é tão frágil e tão forte como nós é a meta. Que ninguém é melhor do que ninguém. 
No final das contas somos pó.

Nem sempre intactos. Nem sempre puros.

O importante é buscar, olhar para dentro de si e observar que o mundo é benção, que somos filhos da Graça - temos a divindade dentro de nós.
"Sejamos gratos às pessoas que nos proporcionam felicidade, são elas os adoráveis jardineiros que nos fazem florir a alma."


São Tomás de Aquino


Quando eu era pequena, não entendia o choro solto da minha mãe ao assistir a um filme, ouvir uma música ou ler um livro. O que eu não sabia é que minha mãe não chorava pelas coisas visíveis. Ela chorava pela eternidade que vivia dentro dela e que eu, na minha meninice, era incapaz de compreender.
O tempo passou e hoje me emociono diante das mesmas coisas, tocada por pequenos milagres do cotidiano.
É que a memória é contrária ao tempo. Enquanto o tempo leva a vida embora como vento, a memória traz de volta o que realmente importa, eternizando momentos. Crianças têm o tempo a seu favor e a memória ainda é muito recente. Para elas, um filme é só um filme; uma melodia, só uma melodia. Ignoram o quanto a infância é impregnada de eternidade.
Diante do tempo, envelhecemos, nossos filhos crescem, muita gente parte. Porém, para a memória, ainda somos jovens, atletas, amantes insaciáveis. Nossos filhos são crianças, nossos amigos estão perto, nossos pais ainda vivem.
Quanto mais vivemos, mais eternidades criamos dentro da gente. Quando nos damos conta, nossos baús secretos – porque a memória é dada a segredos – estão recheados daquilo que amamos, do que deixou saudade, do que doeu além da conta, do que permaneceu além do tempo.
A capacidade de se emocionar vem daí, quando nossos compartimentos são escancarados de alguma maneira. Um dia você liga o rádio do carro e toca uma música qualquer, ninguém nota, mas aquela música já fez parte de você – foi o fundo musical de um amor, ou a trilha sonora de algum momento triste – e mesmo que tenham se passado anos, sua memória afetiva não obedece a calendários, não caminha com as estações; alguma parte de você volta no tempo e lembra aquela pessoa, aquele momento, aquela época...
Amigos verdadeiros têm a capacidade de se eternizar dentro da gente. É comum ver amigos da juventude se reencontrando depois de anos – já adultos ou até idosos – e voltando a se comportar como adolescentes bobos e imaturos. Encontros de turma são especiais por isso, resgatam as pessoas que fomos, garotos cheios de alegria, engraçadinhos, capazes de atitudes infantis e debilóides, como éramos há 20 ou 30 anos. Descobrimos que o tempo não passa para a memória. Ela eterniza amigos, brincadeiras, apelidos... mesmo que por fora restem cabelos brancos, artroses e rugas.
A memória não permite que sejamos adultos perto de nossos pais. Nem eles percebem que crescemos. Seremos sempre "as crianças", não importa se já temos 30, 40 ou 50 anos. Pra eles, a lembrança da casa cheia, das brigas entre irmãos, das estórias contadas ao cair da noite... ainda são muito recentes, pois a memória amou, e aquilo se eternizou.
Por isso é tão difícil despedir-se de um amor ou alguém especial que por algum motivo deixou de fazer parte de nossas vidas. Dizem que o tempo cura tudo, mas não é simples assim. Ele acalma os sentidos, apara as arestas, coloca um band-aid na dor. Mas aquilo que amamos tem vocação para emergir das profundezas, romper os cadeados e assombrar de vez em quando. Somos a soma de nossos afetos, e aquilo que amamos pode ser facilmente reativado por novos gatilhos: somos traídos pelo enredo de um filme, uma música antiga, um lugar especial.
Do mesmo modo, somos memórias vivas na vida de nossos filhos, cônjuges, ex-amores, amigos, irmãos. E mesmo que o tempo nos leve daqui, seremos eternamente lembrados por aqueles que um dia nos amaram.
Adélia Prado