quinta-feira, 26 de outubro de 2017

Amarelo-manga








9 anos era a idade dele.

Pouca idade, mas que já trazia consigo um sorriso brejeiro.

Brejeiro, desconfiado e teimoso. Até hoje.

Cabelos lisos e negros combinavam com os expressivos olhos de jabuticaba.

Adorava manga e não se contentava em apenas ter sua lambuzada companhia amarela. 
Sua energia de criança criava corpo quando se via diante de um pé, e carinhosamente o beijava.

Fosse num quintal alheio, fosse numa avenida de todos, era só a mãe se distrair, e lá estava ele a escalar a árvore feito um Everest.

O tempo passou e tomou gosto não só pelos montes, mas também pelas cordilheiras, pelos arrecifes, pelas planícies, pelos relevos. Apaixonou-se tanto pelas terras áridas e desertas do sertão, como pelas geleiras da Antártida.

Os anos vingaram e virou professor de menino.

Menino que um dia ele foi. Menino que hoje não é mais, mas cuja criança lambuzada de manga ainda ocupa um lugarzinho nostálgico, lá no fundo desse coração cigano e amarelo.

Cresceu, e com ele viu nascer o desejo de desbravar novas terras, pisar em novos solos, experimentar novas iguarias, fotografar novas paisagens, viver novos sonhos.

Cresceu e começou a se encantar, mesmo que sozinho, como se sua companhia bastasse, apesar de alguns momentos querer estar com alguém especial para dividir os novos olhares.

O tempo passou, e aquele menino viciado em manga ainda sobe em árvores, mas precisa da ajuda de uma escada, pelo menos até uma certa altura. Depois, ainda resgata aquela criança sapeca e agitada e se aventura na arriscada escalada ao topo do pé de mimosa. 

Continua brejeiro, desconfiado e mais teimoso do que nunca.

Só a fruta mudou.

Lacre





Dentre tantas a escolher, uma em especial lhe chamou a atenção. E dessa vez não foi nem pelo tom, apesar de ser uma amante incondicional das cores.

Num fase complicada da vida, procurava por uma abertura, uma cavidade, uma brecha, uma aresta, um buraco, uma cissura, uma fenda, uma greta.
Pensamentos confusos e carências latentes a levaram a uma porta que pensava fosse conhecida.

Ilusão sua!

Ansiava por um (re)começo, um rasgão, um acesso, uma passagem, um atalho, uma trilha.

Sonhava com um umbral que se materializasse e a levasse pela mão ao seu interior.


Decidida, parou de buscar fora o que na verdade sabia que estava dentro. 

Não no outro, mas nela própria.

Diante da porta verde de número 8, não se reconheceu. A porta literalmente não falava a sua língua. Sem compreender, se sentiu incompreendida. E a comunicação se desfez. Não se fez.

A entrada não aconteceu. A transição foi interrompida. Bloqueios se instalaram.

Diante de uma porta estrangeira, ela recuou e voltou para suas origens.

Se agarrou ao bê-a-bá da mãe e gritou por socorro! Sua criança interior precisava de colo.

De repente, a porta se abriu. Mas aí já era tarde! 

Ela tinha se trancado dentro de si e jogado a chave fora.

Graça




Eram jovens. Muito jovens.

Ela nasceu Mariana. 

Ele se fez João, numa juventude inocente feito solo imaturo, pobre em letras, mas rica em valores.

As terras, longínquas, eram feito sonho não realizado, onde as sementes eram jogadas ao solo com tanto amor, que lindamente brotavam e eram colhidas com água na boca, por mãos amarelo-manga. 

Uma lindeza só!

Uma delicada mistura de ingenuidade, pureza, inocência e graça.

Setembro chegou, e com ele, as tão esperadas 18 primaveras!

E floresceram.
E perfumaram.
E coloriram.

De graça, a felicidade era encontrada em todo vaso de barro, mesmo sem flor, e apesar da pouca idade, o sonho germinou.

E regado, tornou-se realidade.

Feito uma graça, uniu mãos em prece.

E agradeceu.

Ana nasceu.

Noite funda



Um gato caminha pela rua de pedras ainda molhadas, na cidade iluminada pelos lampiões.
E a madrugada chega, na companhia não muito bem-vinda da neblina, que torna o cenário ainda mais úmido.
Úmido, indigesto e assustador.
O negro do céu se apresenta iluminado apenas pelas tímidas chamas que o curto pavio da lanterna sugere.
Mulheres, no melhor dos seus longos e espalhafatosos vestidos, oferecem insinuantes decotes nas calçadas. 
Homens embebedados pela noite que cambaleava, tentam alcançá-las, mas tudo que suas mãos conseguem tocar é o ar, que de puro, nada tinha.
Canções enjoadas são entoadas por instrumentos já tontos.
Do outro lado da rua, Tango, cabisbaixo a vagar, descompassado.
Brigou com Tequila.
E no auge de sua fúria, lembrou de Morgana, prima da Miucha, sua cachaça para as horas de desalento.
Na frente daquele bar. De ressaca.
Pelo macio, branco e olhos azuis. No momento, avermelhados pelo etílico alheio, mas cujas lágrimas de estrangeiro nada trazia.
Apesar do coração felino e arredio, mais uma noite cria raízes.

quarta-feira, 25 de outubro de 2017

Sala de Espera




O sofá é azul, espaçoso e aconchegante, e eu e algumas colegas charmosamente descansamos, espalhadas sobre ele.
 
Exibida que só, estou de xadrez (azul, branco e vermelho), e me sobressaio dentre as demais, que revestidas com pouca cor, tem sua timidez destacada pelo cinza, preto e marrom. 
Ali permanecem, mudas e inertes, praticamente sem atitude perante os que sentam e levantam a todo momento.

Em geral sou alegre e tranquila, mas às vezes o medo e a escuridão me assombram.


Saindo da minha zona de conforto, de vez em quando percebo que deixo o ordinário e é como se me mantivessem num armário, onde apenas uma porta fechada me protege da minha própria nudez.


Mas, como depois de uma tempestade, o sol volta a brilhar, 
retorno ao meu dia-a-dia ainda mais feliz, cheirosa e radiante.
  Modéstia à parte, sou super fofa, apesar de alguns insistirem que estou um pouquinho acima do peso.  Ousada e atrevida, quando não estou no colo de alguns, que adoram me apertar, me apalpar e me abraçar, ainda suporto o peso daqueles que em mim se apoiam. 

Mas tudo bem! Afinal de contas, me emociona e me sensibiliza este lugar. As luzes da entrada, a recepção, os corredores gelados e uma placa em especial indicando a ala dos pequeninos. 
Olho pra minha vida, assumo o meu papel, e quando uma criança vem correndo, me joga no chão e tenho que ficar literalmente esmagada por uma cabeça cujo corpo se debruça sob a maciez do tapete, para ali ficar por horas, enfeitiçada, respiro aliviada por estar fazendo o bem.
 
A tela da velha TV exibe mais um desenho animado.